terça-feira, dezembro 21, 2004

despedaçam os lugares onde se escuta o silêncio

de asas transparentes e voar no pensamento

disse sim
à vida ainda no ventre de minha mãe
um sim
quando tentei falar
sim,
quando as regras me impunham a chorar
um sim
ao meu primeiro beijo
tantos sins pela vida fora
às ilusões,
desilusões
aos mistérios,
aos prazeres
sim
ao fascínio e ao sonho
à imagem verdadeira do amor
às horas de incerteza
sim
aos queixumes
e lamentos da noite
às lágrimas que
teimavam em cair sem beleza


talvez noutro momento,
noutra lembrança
de poder
o meu pensamento
na calma de uma liberdade já passada
em qualquer altura,
mesmo agonizada,
conseguisse dizer não
não ao obsessivo
poeirento caminho
não ao hábito
da noite
não à dor
de infortúnios
não no momento
de nascer


onda

segunda-feira, dezembro 20, 2004

respiro mergulhando o meu olhar em ti

em cada silêncio mergulha a palavra

aqui

junto à praia fundi palavras
os olhos, esses transformaram-se
adquiriram o brilho da cor da madrugada,

o sol partiu,
evaporou-se entre nuvens cinzentas
deixou sombras de um tempo passado,
ficou só o barulho das aves em grupos,

respiro em silêncio o cheiro do mar
anoiteceu mais cedo
a lua brilha tanto como o sol

aqui deixo-me ficar
numa amarga memória de inspiração alheia
imaginando ouvir palavras que esperei

tenho como companhia a noite
que me persegue e assusta,

já nada possuo em mim
amanheceu,
prendi-me ao esquecimento
por tanto amar


espero o dia que sobrevirá ao outro


onda

quarta-feira, dezembro 08, 2004

este é o vento que chega correndo em seus cantos

louco o vento
no sopro vibrante da melodia


cantou agitado
bailou nas folhas outonais


sóbrio
impertinente
flutuou nos sonhos


despertou preguiçoso
no jejum do dia
saudando a branca manhã


sem peso renovasse
confunde os melhores.


poderoso e livre
torna a doce brisa amarga


engana de frente ou pelas costas
em gritos esfumados
arrasa cruel sem se deter


quebra pela força
a beleza da vida presente



onda
vento ruges na terra, sopras e chegas obscuro, cantando a tua canção

domingo, novembro 07, 2004

encolho-me na janela onde desvendo o tempo

diluída na chuva

a chuva caiu

olhei
vi cair a chuva
ocultei a solidão do tempo

os olhos
fecho-os
e
imagino a chuva
assim miudinha caindo de raiva

imagino sorrisos no teu rosto
entre o sabor de beijos molhados

abrigo-me de ti
ou
de mim nem sei

penso que renasci nesses dias vagos
como em tantos outros dias
onde pensei que morri nas noites inventadas de nada
e que o nada era teu rosto
surgindo na passagem do nevoeiro

nada mais importa

que seja chuva ou nevoeiro,
o vento ou a madrugada,

que seja a infindável noite
ou um soluço diluído em poeiras

no tempo
quero que algo te traga


onda

quinta-feira, novembro 04, 2004

resta-me uma recordação de um silêncio

Claridade dada pelo tempo

Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua
que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade
de sombras
dá-me um cão ou uma bola
ou qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me os teus braços exaustivamente
longos
dá-me o sono que me pediste uma vez
e que transformaste apenas para
teu prazer
nos nossos encontros e nos nossos
dias perdidos e achados logo em
seguida
depois de terem passado
por uma ponte feita por nós dois
em qualquer sítio me serve
encontrar o teu cabelo
em qualquer lugar me bastam
os teus olhos
porque
sentado numa nuvem
na lua
ou em qualquer precipício
eu sei
que as minhas pernas
feitas pássaros
voam para ti
e as tonturas que a planície me dá
são feitas por nós
de propósito
para irritar aqueles que não sabem
subir e descer as montanhas geladas
são feitas por nós
para nunca nos esquecermos
da beleza dum corpo
cintilando fulgurantemente
para nunca nos esquecermos
do abraço que nos foi dado
por um braço desconhecido
nós sabemos
tu e eu
que depois de tudo
apenas existem os nossos corpos
rutilantes
até se perderem no
limite do olhar
dá-me um cigarro
mesmo que seja só um
já me basta
desde que seja dado por ti
mas não me leves
poesia
não me tires
as tonturas que eu teria
que eu terei
sempre que penso cá de cima
duma altura vertiginosa
onde a própria águia
nada mais é que um minúsculo
objecto perdido
onde a nuvem
mais alta de todas
se agasalha como um cão de caça
leva-me a recordação
apenas a recordação
da vida martelada
que em mim tem ficado
como herança dada há mil e
duzentos anos
deixa que eu fique
muito afastado
silencioso
e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir
. . .
Mário-Henrique Leiria


quando acabava sempre a mesma reacção:

<@the_sad_punk> lol
<@the_sad_punk> :)))))))
< 03onda > *~
<@the_sad_punk> *********

no isolamento da minha memória vou guardar-te e do lado de lá vejo-te envolto no prazer de leres

um dia no mesmo espaço onde tantas vez deslizaram palavras, vi-te pela última vez:

Session Start: Sat Oct 30 10:54:43 2004
Session Ident: #poesia
[10:54] [10:54] * Entrou no canal #poesia
[10:54] * Topic is '---> http://canaldepoesia.blogspot.com/ <--- mais uma crónica de outono '
[10:54] * Set by do-mundo on Fri Oct 29 13:35:20

nesse dia foram somando as horas sem tempo, numa intensidade de poemas ou textos e vi-te chegar à mesma janela onde muitos anos partilhamos juntos tantos momentos

[14:41] [14:41] * Entrou : the_sad_punk (K-nabis@127.137.245.28)
[14:41] * ChanServ sets mode: +o the_sad_punk

minutos mais tarde sem um sinal vi-te sair

[14:47] * Saiu : the_sad_punk (K-nabis@127.137.245.28)

e o comecei a escutar o silêncio.

agora abro diariamente a janela e aceno-te, mas tu já não me podes ver, escrevo palavras no espaço, olho e sinto um imenso vazio

onda

sábado, outubro 30, 2004

agitou-se a noite e aqueceu o dia

veio o dia sem idade arrasando sem cor
os movimentos dos dedos

da janela
uma única estrela na profunda escuridão

o frio trai sorvido nas sombras

espírito e alma
misturam-se no sal da vida

a noite traz um sopro árido
cheio de rumores em marés invisíveis

o mar arrastasse terno e doce
embriagado em mistérios
branco e
nobre

realçam sentimentos

sente-se o cheiro
dum desejo

o de amar


onda

domingo, outubro 17, 2004

a emoção ficou trancada

encontrei uma esquina de janela e vagueei

abri janelas às certezas

entraram sem condições

vieram sem imagem,

reflectiam justiça

pouco a pouco
ecoavam vozes
confusas

e tudo irrompia

não se distinguia o brilho do dia
ou a escuridão da noite

tentaram atravessar a vida

metade visível,
mas sem memória

outra metade
densa e insaciada

trouxeram a realidade e o bom senso

juntaram emoções

desejos

carácter
segurança,
palavras difusas

fechou-se a janela

fui ao encontro do esquecimento

deixei partir as certezas

isolei as recordações

voltei costas à realidade visível
ao fundo
a janela abre-se

onda

segunda-feira, outubro 04, 2004

a magia em cada movimento pelo grito da razão

Caboclo Roceiro

Caboclo Roceiro, das plaga do Norte
Que vive sem sorte, sem terra e sem lar,
A tua desdita é tristonho que canto,
Se escuto o meu pranto me ponho a chorar

Ninguém te oferece um feliz lenitivo
És rude e cativo, não tens liberdade.
A roça é teu mundo e também tua escola.
Teu braço é a mola que move a cidade

De noite tu vives na tua palhoça
De dia na roça de enxada na mão
Julgando que Deus é um pai vingativo,
Não vês o motivo da tua opressão

Tu pensas, amigo, que a vida que levas
De dores e trevas debaixo da cruz
E as crides constantes, quais sinas e espadas
São penas mandadas por nosso Jesus

Tu és nesta vida o fiel penitente
Um pobre inocente no banco do réu.
Caboclo não guarda contigo esta crença
A tua sentença não parte do céu.

O mestre divino que é sábio profundo
Não faz neste mundo teu fardo infeliz
As tuas desgraças com tua desordem
Não nascem das ordens do eterno juiz

A lua se apaga sem ter empecilho,
O sol do seu brilho jamais te negou
Porém os ingratos, com ódio e com guerra,
Tomaram-te a terra que Deus te entregou

De noite tu vives na tua palhoça
De dia na roça , de enxada na mão
Caboclo roceiro, sem lar , sem abrigo,
Tu és meu amigo, tu és meu irmão.

Patativa do Assaré


domingo, outubro 03, 2004

terça-feira, setembro 21, 2004

no silêncio liberto o grito sufocado no desespero invisível da natureza


Imagem de Edvard Munch

o grito


Nasceu em mim o grito
esmagado
calado
num desabafar moribundo de amor
despertou profundo e partiu
sumiu
na pressa levou com ele
um sorriso constante
pensamentos trancados no peito
a luz
de uns olhos
os meus
que exprimem quando não consigo falar
fiz seguir o destino sem rumo
parei o tempo
num sopro
com rotas traçadas
invisiveis
num céu branco
como espuma,
sem um lamento
fatigada, presa no tempo das nuvens
vencida por sentimentos
e num gemido amargo
quis sair
da preguiça de me sentir vencida
provar a água
que me lava e acaricia
saber sentir
sem me apagar
dentro de ti


onda

domingo, setembro 19, 2004

escuro lamento da noite onde se escuta o uivar do vento



na noite tétrica
vi sombras

vazias

caladas

fechadas

chuva ácida, num miudinho chuvisco

solidão oprimida
de tanto resgatada,

momentos eternos de adiamentos
em sonhos livres e desnudados

linhas de um rosto
entrelaçadas
na brisa de um desejo,

um nunca
presente,

o bater da cabeça
de raiva
nas palavras injustas,

a indiferença
que corre em veias grossas,

vi
desprezo
indiferença injustiçada

dizer não
à fúria de estar

por querer ser o prazer saciado


onda
com palavras abres a porta à noite e transformas-te numa sombra lenta

entropecida nos segredos da voz do mar




bebo o silêncio
saboreio o vento,

sacio a fome com a saudade
respiro o mel da fruta

a ausência é uma forma de vida,
baloiço em palavras

em gestos e vozes
com o mar me perfumo

de flores construo um mundo
onde combato o terror e o medo.

atravesso a noite cinzenta,
como um barco sem rumo

exausta sucumbo lentamente
em imagens desfocadas

entro dentro dos sonhos
onde o amor se revela
em movimentos belos e luminosos

perco-me no sono, perto de um coração
que não consegue tocar-me.

extingo-me nas memórias do tempo
ao longo da costa verde e espessa,
tocada por águas translúcidas

é tarde,
diluí-me no sulco da maré


onda

quinta-feira, setembro 09, 2004

um lugar que pinto na imaginação
imagem

atravessei caminhos na vida
numa obscuridade total

o frio foi meu companheiro
além das sombras e solidão

o rosto não o reconhecia
a imagem foi apagada pelo tempo

algumas traziam consigo a dor

tento lembrar-me dos risos
das árvores verdejantes
do cheiro das flores do campo
dos risos de felicidade,

desperta em mim a alegria,
a saudade é dura

vejo rostos sem lhes saber o nome
rostos desconhecidos

sigo o caminho como se fosse uma ordem
quero voltar atrás
como se alguém me chamasse

olho de quando em vez
apresso o passo na noite

desvio o olhar
nada do que procuro me transforma
ou me traz de volta o que procuro

encosto-me, fecho os olhos
e cansada reconheço uma voz

respondo-te e regresso.


onda

quarta-feira, setembro 08, 2004

lua transparente onde me prendo sem condições



isolo a noite
da lua transparente

desafio a penumbra
caminho suspensa na noite
largando o esquecimento
na chuva, intensa e fria

passo a passo
desvendo os gestos
entorpecidos pelo desgaste,
entro nos sonhos invisíveis da voz do mar

num vento ofegante
sem regresso
chega até mim o ruído das ondas
numa obsessão sonâmbula

gemidos desprendidos,
nos fluxos de uma hipótese de amor
onde me anuncio
em palavras sem cor


onda

segunda-feira, setembro 06, 2004

Pedro da Cunha Pimentel Homem de Mello nasceu em 06.09.1904, no Porto



O Bailador de Fandango

Sua canção fora a Gota.
Sua dança fora o Vira.
Chamavam-lhe "o fandangueiro".
Mas seu nome verdadeiro
Quando bailava, bailava...
Não era nome de cravo
Nem era nome de rosa;
Era o de flor, misteriosa,
Que se esfolhava, esfolhava...
E havia um cristal na vista
E havia um cristal no ar
Quando aquele fandanguista
Se demorava a bailar!
E havia um cristal no vento
E havia um cristal no mar.
E havia no pensamento
Uma flor por esfolhar...
Fandangueiro! Fandangueiro?
(Nem sei que nome lhe dar...)

Tinha seus braços erguidos
Não sei que ignotos sentidos...
- Jeitos de asa pelo ar...
Quando bailava, bailava,
Não era folha de cravo
Nem era folha de rosa.
Era uma flor, misteriosa,
Que se esfolhava, esfolhava...
Que se esfolhava, esfolhava...


Domingos Enes Pereira,
Do lugar de Montedor,
(O bailador de Fandango
Era aquele bailador!)
Vinham moças de Areosa
Para com ele bailar...
E vinham moças de Afife
Para com ele bailar.
Então as sombras dos corpos,
Como chamas traiçoeiras,
Entrelaçavam-se e a dança
Cobria o chão de fogueiras...


E as sombras formavam sebe...
O movimento as florira...
O sonho, a noite, o desejo...
Ai! belezas da mentira!


E as sombras entrelaçavam-se...
Os corpos, ninguém sabia
Se eram corpos, se eram sombras,
Se era o amor que se escondia..


Pedro Homem de Melo
Pecado, Líricas Portuguesas

em predra exausta no encontro da noite



fui pedra
em manhã de frio.


estrela
nos caminhos da infância


verão quente
em arbustos de fogo


frescura
num instante inocente


fui obra
na inteligência humana


lâmpada
duma paixão adormecida


infinito
em certas horas


teoria
de palavras ardidas


fui sonho
de uma loucura com sol



onda



domingo, setembro 05, 2004

arrasto as palavas que fazem eco na alma



desapareço por entre o fumo ....
a névoa que me cega
a onda que me arrasta
o mar salgado
com manchas de sangue verde
um cheiro a maresia
num vento que bate leve
arrastando a corrente
levando as tristezas da vida
os dias mal passados
amenizemos a palavra amor
de momentos inquietos
mas duma lucidez irreversível
entre imagens reflectidas
de um adeus sempre adiado
com palavras enlouquecidas
gritos loucos e roucos
sombras tremidas e frias
percorrem a casa vazia
num rumor longínquo
que atravessa vales rios e colinas
num sopro suave da noite
onde a madrugada se anuncia
num cansaço de memórias

onda - um improviso com alguém

volto a fundir-me inclinada em cada dia que amanhece



4

Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos
E quero cair em desuso
Fundir-me completamente.
Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo
Os focos celestes que a candeia humana não iguala
Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer.
Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te
Voltado para mim
Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.

Daniel Faria
Do inesgotável
Dos Líquidos

sexta-feira, setembro 03, 2004

acenava ao vento com palavras que se soltavam dos dedos



Agarrei o Mundo entre os dedos da mão...
Gritei-lhe bem alto a dor da desilusão!


Pintei-o como se fosse um arco-íris...
Tirei-lhe a guerra, a fome, as amarguras da vida!


Gritei-lhe o desespero do frio
da dor, da destruição e revolta!


Tentei ensinar-lhe a usar
o verbo amar e pensar...


Mergulhei-o no abismo
Entre passos incertos.


Em pedaços de gente
Pedi-lhe o momento...


E por um instante o mundo parou


onda

domingo, agosto 29, 2004

o cheiro a maresia que me enche a alma



A onda

Era uma onda que crescera para lá do meio do mar
e mais se alçava em corpulência das ondas que tragava
pelo caminho. Era uma onda ávida.
Com ela rolavam búzios alucinados, estilhaços de
conchas, madeiros, plâncton, algas, o último alento dos
afogados... Era uma onda violenta.
A exaltação que trazia dos confins do horizonte nem
lhe dera para se interrogar sobre qual o desígnio do seu
destino. Era uma onda embriagada de vida.
Desfraldada em cachão, cavalgava para terra. A rojar-se
sobre os primeiros bancos de areia, esboçou enfim a
pergunta:
- Porquê?
Mas já não teve tempo de responder.


António Torrado
in Cinco sentidos e outros 1997

a força da noite envolve mistérios



Como uma flor vermelha

À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.


Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, agosto 28, 2004

gestos e palavras a fluir pela vida



Fixei imagens numa lua artificial
escondi a tristeza no corpo em segredo

senti um olhar ferido partindo na escuridão da noite
num sentimento de procura
na penumbra de um desejo

fiquei ali presa naquele mundo de mistérios,
mergulhada em insónias e sonhos obscuros

enxuguei as lágrimas,
ignorei a melancolia da vida
guardei uma imagem
a imagem do teu rosto

guardei os desejos,
as promessas viciadas de palavras quentes
os sonhos

guardei a vontade das noites passadas junto ao mar
o desgaste de um amor que escureceu como a noite

então anoiteceu e num vago olhar
o vento levou um nome,
o teu e nada mais restou

onda

quinta-feira, agosto 26, 2004

Perdesse para lá do tempo o caminho que pisamos



na poeira dos sonhos
longe do mundo

sem mexer
num desfilar de imagens

os corpos perdem-se
e descobrem outros rostos

loucuras que caminham em medos
em lixos mágicos de memória

onde a vida deu mil voltas
sem se deixar contornar

fogem os corpos fluidos
em direcções opostas
separando-se ao amanhecer.

onda

sábado, agosto 14, 2004

palavras escritas à solta

um soltar de palavras no irc deu isto que achei interessante registar, num tempo que passava à solta



@Nao_Suporto> Eu e os meus segundos...
@Nao_Suporto> perco-me nestes segundos que acabam por ter conotação de horas e na realidade até são.
@onda_verde> minutos mutiplicados
@onda_verde> em segundos dividos
@onda_verde> onde as horas fazem o dia
@Nao_Suporto> e os dias sabem a eternidade
@onda_verde> que se estende na vida
@Nao_Suporto> no ser...
@Nao_Suporto> na essência...
@onda_verde> do tempo
@onda_verde> alastrado pela sombra
@onda_verde> contaminada
@onda_verde> onde é soberano o silêncio
@Nao_Suporto> vejo som sem som
@Nao_Suporto> seres sem ser...
@Nao_Suporto> palavras sem letras
@onda_verde> brancas e vazias
@onda_verde> fixadas na pintura
@onda_verde> do rumor
@onda_verde> demolidas da origem
@Nao_Suporto> parasitas da essência
@onda_verde> incoerentes na razão
@onda_verde> calcinadas
@onda_verde> pela sede de viver

domingo, agosto 08, 2004

O Esconderijo do Homem Triste
Não sei o que me aconteceu para ficar tão triste.
Lembro-me de ter percorrido meio mundo à procura de imagens.
Tinham-me dito: é no movimento incessante de quem viaja que encontrarás
a imobilidade que desejas.

Mas eu não sabia para onde ir. Deambulei anos a fio, e nunca encontrei as imagens
que queria. Gastei as parcas forças que tinha neste trabalho,
até que um dia me perdi junto ao mar.

Resolvi construir, ali mesmo, uma casa.

Tencionava não sair mais daquele lugar onde me perdera. Imobilizar-me,
viver e envelhecer dentro de quatro paredes nuas erguidas pelas minhas mãos.
Morrer frente ao mar, sozinho, como num romance que lera havia anos.
Esperar que a casa se esboroasse e me servisse, por fim, de túmulo.

Assim não aconteceu. Algum tempo depois, a casa transformou-se subitamente
em prisão. E talvez tenha sido isso que me pôs, assim, triste para sempre.
Custava-me a crer que aquilo que eu próprio construíra acabasse de me atraiçoar.

Assustei-me e fugi nessa mesma noite. Ignoro o que se passou com a casa.
Não sei se ainda existe... o que sei é que a meio daquela fuga desesperada
ocorreu-me o que me levaria, enfim, a encontrar o esconderijo para a minha
imobilidade.

É desse lugar iluminado que, hoje, vos falo.

Fui ter com um fotógrafo meu amigo e pedi-lhe para me retratar.
Ele acendeu um foco de luz. Sentei-me no centro dele.
A máquina disparou sem cessar.

Gesticulei, abri os braços, mexi-me muito - como se soubesse
que nunca mais o voltaria a fazer.

Quando o meu amigo mergulhou o papel fotográfico no revelador,
eu também mergulhei. Mas devo ter desmaiado uns segundos, talvez minutos,
porque ao retomar consciência senti as pernas e os braços dormentes
- e todo o meu corpo estava mole.

Um véu de luz toldou-me a visão. Ceguei por instantes, mas não foi
uma sensação desagradável. Depois, o corpo começou a ondear,
a impregnar-se no papel e a coincidir com o retrato que o meu amigo fizera de mim.

Segundos mais tarde uma pinça metálica tirava-me do revelador. Senti, então,
a frescura da água - e toda a superfície da folha de papel, o meu novo corpo,
brilhou. Em seguida deixei-me entorpecer na temperatura tépida,
voluptuosa, do fixador.

Tinha encontrado o esconderijo.

E aqui estou, diante de quem me visita e olha. Apesar de não ter deixado de ser
um homem triste, adquiri a vantagem de estar sentado, e de já não precisar
de fugir ou desejar seja o que for.

Mas o pior momento do dia é aquele em que nos separamos. Não consigo dormir.
Fico noite fora com a minha solidão - e quem esteve a ver-me parte
com o susto de continuar a existir.

Nenhum de nós é capaz de murmurar: fica comigo e toca-me. E a noite cai,
de certeza, mais escura para quem parte.

Eu sou apenas a imagem do que fui. Não sinto nada.

Certa vez, um homem e uma mulher pararam diante de mim. Olharam-me muito tempo.

Aproximaram-se, afastaram-se, voltaram a aproximar-se do vidro que me protege. O nariz da mulher quase me tocou nos joelhos.

De repente, a mulher inclinou a cabeça, sobressaltou-se e disse:

- Zé, perdi o vidro do relógio.

O homem baixou-se e procurou-o. Quando o encontrou, deu-lho. Mas ela argumentou:

- A culpa foi tua. Eu não queria vir aqui.

O homem, muito sério, respondeu-lhe.

- Francamente, Fátima, não te toquei no pulso. Não mexi no tempo. Nunca mexo no tempo...

Outras vezes, quando não está ninguém olhar para mim, ponho-me a cismar:

A luz é o meu túmulo.

Em tempos, os meus gestos tiveram o rigor da abelha que rouba o pólen à flor.
Com esses gestos quis construir um espaço para o silêncio. Uma morada
onde fosse possível ignorar o mundo, ou esquecê-lo.

De vez em quando, aceito ainda o mistério das palavras que me cercam
e não coincidem, em nada, com a realidade. Eu só quis celebrar a vida.
Encontrar o esconderijo onde fosse possível um derradeiro acto de paixão.
O esconderijo onde pudesse, de novo, tocar teu rosto
e recusar a aridez da calúnia.

Mas a luz é o meu túmulo.

A pouco e pouco incendiaram-se os negros profundos, o círculo luminoso
aprisionou-me, e as mãos gesticularam sem sentido. O interior das paisagens
guardou a tua ausência. E numa última visão a madrugada
irrompeu do mar adormecido.

As mãos abriram-se novamente,
quando o dia começou a devorar a nudez do corpo.

Comovido, perdi a voz.

Não podia chamar-te, lembro-me, por isso desatei a escrever o teu nome
nas paredes da cidade. Tempo perdido. Já não podias ouvir-me nem ler-me.
Foi quando desejei, com ardor, este esconderijo.

Aqui, pelo menos, respiro ar condicionado, e um foco de luz
simula a eternidade dos dias.

Não há emoções, nem palavras ditas em voz alta. Não acontece nada,
nem se ouve respiração alguma.

Quem me visita diz coisas fantásticas a meu respeito. Nunca confirmo
nem desminto. Limito-me a ouvir e calo-me. Porque há coisas que devem correr com o tempo e, mais tarde ou mais cedo, nele se apagam.

É claro que também há coisas guardadas na minha memória de papel.
Mas essas, já não tenho a certeza de que alguém as tenha dito
ou eu as tenha, de facto, ouvido.

Por vezes ponho-me a sorrir, mas ninguém consegue ver que sorrio,
porque o retrato que me esconde - como eu - está morto e desfocado.

E a luz é o nosso túmulo.


Al Berto

sexta-feira, agosto 06, 2004

por extenso entendeu dobrar o destino e enebriar sem limites e desvios





Um beijo por extenso



achei e gravei-o por extenso
aqui bem perto
um beijo sem condição
expendi-o no teu regaço
para te olhar
nos olhos bem no fundo
entrar na tua alma
e nela sentir o conforto
sentir um desejo
de o levares
ser único e inebriar-te
com um encanto que te seduzisse
por extenso
e em transparência
aquecido ao rubro
por seres parte
de um pensamento inusitado
numa hipótese amarrotada

onda

quinta-feira, agosto 05, 2004

fio na face, fluxo doce de uma onda do mar



(F.)


Lá saiu, F outra vez.
Desta feita foi dizendo
que ia comprar rebuçados.
O ponto de partida
teria de assentar
no plano vago
que também incluía uma ponte
até ao porto de chegada.
Evidentemente que entre
um maravilhoso isto
e um sensacional aquilo
se perde muitas vezes,
e muito incrivelmente,
uma belíssima continuidade,
o fio da meada, quejandos,
vice-versas respectivos ou não.
Seja como for, desta vez,
foi outra vez em que F
saiu falando à toa.
A solidão em si mesma
é o estado menos solitário
que se pode conceber
já que, a seu tempo,
ela está com todos
e cada um de nós.
As insónias têm nomes
desencontrados
e alheios aos sonhos;
têm a essência triste
das ideias extraviadas
na rota dos ventos;
e tudo isto acontece
nos meandros
da própria mente.
... A ver de rebuçados
como F disse, ao sair,
mas queria, algo mais,
como a transparência
abrupta de um vento
etilizado em cristal;
julgava inexpugnáveis,
todos os acessos
à ideia de infinidade
num reflexo de um copo.
Lá saiu... de vez
e atrás de si
todas as deixas de uma vida
não importavam mais
que... ... ... rebuçados.


_________________LuMe
Luis Melo

mar





Em frente ao oceano
venho desvendar a fantasia
como que num deambular
entre ocasos intemporais
e simulacros de acasos.
Confronto-me com o oceano
embarcando no seu transe.
Na minha mente
evolui uma monção geminada
que resulta no dual sentido
de estar atento e alienado.
Se a brisa me afaga o rosto
se as algas me cobrem os pés
não deixo eu de ser a brisa
nem hesito em viver na alga
ou em divagar pela melodia
deste Todo que se retém
sem nunca se repetir.
Em frente do mar
embriago-me em gradações
do original, pelo absurdo,
até ao absoluto reavivar
em cada grão de areia
uma réstia de eternidade
uma abstracção débil
com um gosto salgado
de um oceano interior.
Sou dele a taça
as margens, o leito;
sou um verso vivo
na poesia dos meus avós;
sou a veia conducente
ao coração da terra-mãe
ao meu ventre de viver
e de um dia morrer.
Algures, a ponte
como uma dádiva perene;
um salvo-conduto à passagem
da fantasia para o sonho
na bruma tranquila
entre duas madrugadas.
Ocasionalmente,
a candura do afago
de um fiozinho de sol
que desencadeia delírios
nas linhas de força
do cristal, feito de mim,
em frente ao mar.
...E a minha alma nua
a reinventar o salgado
e a maresia numa lágrima.

_________________LuMe
Luis Melo

a noite transforma as palavras



Derrubei o olhar nos mistérios do tempo
contornei a ilha da verdade,
mergulhei embriagada na tortura da noite
com os olhos saboreio adormecida,
o reflexo de um rosto
nas paredes descubro o mistério das mãos
em sombras cruzadas e finas.


Sinto o mar
em rostos cansados de sofrer,
cigarros que ardem em dedos duros e queimados
felicidade com defeito dilacerado,
amor inacessível,
construído em labirintos
palavras sem valor manchadas e vazias
vozes tremulas gastas de desanimo.


Uno as mãos
um gemido adormece comigo


onda

segunda-feira, agosto 02, 2004

com a pélala branca do malmequer amarelo pintei o dia




veio o dia sem idade
que arrasa sem cor
os movimentos dos dedos

da janela
uma estrela na profunda escuridão

o frio trai
sorvido nas sombras

espírito
alma
misturados no sal da vida

sopro árido
rumor de marés invisíveis

um mar terno e doce
embriagado de mistérios

branco, nobre
realçando sentimentos

o cheiro que sinto
num
desejo de amar


onda

sexta-feira, julho 30, 2004

encantam-me as borboletas
as suas cores
o seu baile
de felicidade
seduz-me o seu encanto
a saltitar de alegria
num desejo único
de ser uma parte de mim

quarta-feira, julho 28, 2004

deram-te voz e ganhas-te outra alma

Pressentindo
o desassossego da noite
a voz
indicou o caminho
isolou o rosto
diluiu memórias
esqueceu o nome
humedeceu o olhar
a voz
ergueu bocas
em beijos loucos
sabotou o canto das aves
juntou à alma o mar
a voz
espreitou pela janela
prendeu-se num raio de luz
navegou desejos
cicatrizou feridas
mas mais...
a voz
petrificou lágrimas
culpou a solidão
uniu dois corpos
e
a voz
deixou por fim
ouvir o amor

onda

gritou a voz liberta no alvoroço da madrugada



A voz indicou o caminho
isolou o rosto
diluiu memórias
esqueceu o nome
humedeceu o olhar
pressentiu a noite nervosa
ergueu bocas
em beijos loucos
impediu o canto das aves
juntou à alma o mar
espreitou pela janela
prendeu-se num raio de luz
divagou desejos
cicatrizou feridas
congelou lágrimas
culpou a solidão
uniu dois corpos
a voz
deixou por fim
ouvir o amor

onda

terça-feira, julho 27, 2004

quebrei as sombras do tempo com palavras



construí meu rosto
de uma caverrna

rasguei a noite
com o luar

com madrugadas
cantei ventos

sonhei na inversão do tempo,
fiz da loucura a realidade

destruí a cidade
com vícios nocturnos

desenhei a solidão,
dei-lhe a lógica

ao dia várias cores
para se tornar evidente

chamei vida
à morte!

abri a porta à realidade
eram tantas que me confundiram

ali deixei o meu olhar tornar-se liso
quebrei os vidros do tempo

onda

segunda-feira, julho 26, 2004

disse sim em vez de não




disse sim
à vida ainda no ventre de minha mãe
um sim
quando tentei falar
sim,
quando as regras me impunham a chorar
um sim
ao meu primeiro beijo
tantos sins pela vida fora
às ilusões,
desilusões
aos mistérios,
aos prazeres
sim
ao fascínio e ao sonho
à imagem verdadeira do amor
às horas de incerteza
sim
aos queixumes
e lamentos da noite
às lágrimas que
teimavam em cair sem beleza


talvez noutro momento,
noutra lembrança
de poder
o meu pensamento
na calma de uma liberdade já passada
em qualquer altura,
mesmo agonizada,
conseguisse dizer não
não ao obsessivo
poeirento caminho
não ao hábito
da noite
não à dor
de infortúnios
não no momento
de nascer


onda

alimento o olhar com as tuas palavras




Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
Teu grande amor que é teu maior segredo!
Que terias perdido, se, mais cedo,
Todo o afeto que sentes se mostrasse?

Basta de enganos! Mostra-me sem medo
Aos homens, afrontando-os face a face:
Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.

Olha: não posso mais! Ando tão cheio
Deste amor, que minh'alma se consome
De te exaltar aos olhos do universo...

Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
E, fatigado de calar teu nome,
Quase o revelo no final de um verso.


Al Berto

digo palavras, lembro-me de um mar verde, o desfolhar do medo, a força do olhar




Num olhar gelado
sorri.
Entrou no corpo
queimou,
sonhei
o coração cantou
suspirei com energia
a liberdade de uma vida
escondida
num medo
em farrapos de tempo
entre frio
chuva
e vento,
num abraço
escutei
e senti,
o tempo passar veloz.


onda

nostalgia de uma noite




nostalgia
da noite,
no silêncio
do caminho
entre a madrugada perdida
em
destinos
ânsias
frustrações,
no absurdo frio
de um sonho.
Arrumei
a
luz do dia
na ternura de amantes
entre o espaço
da janela.
Memórias de grito eloquente
num sim à poesia,
onde a poesia
é excelência
nas palavra interessantes
dentro da cidade perdida.
Troquei o ontem
pelo amanhã
para o sentir
renovado
de razões
numa deriva de olhar
o azul
pisando a areia da vida.

onda

domingo, julho 25, 2004

Amava-a e pela eternidade irei dilacerá-la




Amava-a e pela eternidade
irei dilacerá-la,
o punhal que embrenhei
nas aurículas
cerceando o riacho
das veias
será agora amante
de Rosalia ,
penetrará as costas
buscando o coração ,
a redoma da morte
não é refúgio
suficiente ,
no inferno não há
meias medidas.
Ficámos juntos
em território danado.
Apesar da matilha de cães ,
o dilaceramento ,
a bruta repetição do crime
pelos séculos dos séculos ,
eu e a minha amada
estamos livres de Deus
até ao fim do mundo.


Fátima Maldonado

sábado, julho 24, 2004

o impossível




agarrei o Mundo entre os dedos da mão
gritei-lhe bem alto a dor da desilusão


pintei-o como se fosse um arco-íris...
tirei-lhe a guerra, a fome, as amarguras da vida


gritei-lhe o desespero do frio
da dor, da destruição e revolta


tentei ensinar-lhe a usar
o verbo amar e pensa


mergulhei-o no abismo
entre passos incertos


em pedaços de gente
pedi-lhe o momento


e por um instante o mundo parou


onda

quinta-feira, julho 22, 2004

leio-te no silêncio de todas as noites Herberto Helder



Amo-te
— diríamos nós,
no exacto instante de lhe cravar o punhal
no meio do peito.

E depois
desejaríamos que se fizesse luz,
uma grande luz branca,
o sol,
para vermos o sangue correr e,
possivelmente,
afogar a nossa boca no sangue amado.

Para conhecermos tudo,
até ao fundo
e até ao fim.
Porque o amor e o conhecimento
são as artes do crime.

Tenho um ramo de flores para ti,
diz o amante:
são flores, venenosas.

Mas toda a gente sabe isto:
ninguém deseja nada do amor.

É o tema eleito das palavras.

Eis a razão por que o outro
está escondido na praça,
ao meio da qual existe um largo fontanário,
com a sua rodada taça de pedra,
de onde transborda uma água
silenciosa e dormente.

A brasa do cigarro
marca uma curva no ar
e cai na água.


Ele está ali, bem perto.
Mas depois
tudo será mais difícil.

Porque
será a perseguição declarada,
sem o pretexto de pedir lume.

Também não haverá já
a indicação do lume, no meio da noite
— o sinal de que ali está a pessoa,
viva,
fumando,
respirando,
tremendo.

Porque foges?,
e enquanto,
no mais secreto da sua aflição,
ele o pergunta,
corre em direcção ao fontanário
e quase esbarra com o outro.

Sentem-se,
mútuos,
únicos,
arfam no escuro da praça,
a treva treme levemente
na água adormecida.

Mas ele diz
(e quem sabe se isso é absurdo?)
diz: lume,
e o outro escapa-se,
e põe-se a correr em volta
do fontanário.

Os sapatos
chapinham na água e a ele,
que já começou a persegui-lo,
correndo também em torno da taça de pedra,
chapinhando do mesmo modo
na água vazada,
ocorre-lhe um insólito pensamento:
caminhamos sobre as águas.

Então abranda um pouco a corrida,
inclina o corpo para a direita,
e mete a mão na água da taça.

É um ruído novo,
virgem,
e o contacto da sua carne com a água
faz nascer em si uma confusa alegria,
o sentido de uma festa natural,
o desejo de morrer ali,
agora,
triunfalmente.

E o outro?
— o outro foge,
e como não abrandou o passo,
nem mergulhou a mão na água,
nem pensou (supõe-se) na alegria
de uma festa mortal,
o outro adiantou-se,
e já se encontra no lado oposto
do fontanário.

E é ágil,
essa criatura sem nome,
o ser que se ama,
aquele que se persegue
e a quem se deseja conhecer,
para suplicar lume,
ou voz,
ou vida,
ou sangue,
ou sabe--se lá o quê.

Corre depressa demais.
E andando em círculo,
chapinhando sempre na água,
e às vezes pensando ainda:
caminhamos sobre as águas,
ele sente,
súbito,
que o outro avançou bastante.

Treme de medo,
porque o outro avançou tanto
que já ultrapassou o ponto onde,
com o ponto onde ele se encontra,
formava os extremos do diâmetro
do círculo.

E isto significa:
o outro é agora o perseguidor.

E, como avança cada vez mais,
torna-se cada vez mais no perseguidor,
e ele no perseguido.

Talvez o outro pense:
porque foges?,
e lhe queira pedir a sua voz,
o seu amor,
o seu sangue.

É quando sente perto da nuca
a respiração do outro.

Tem tempo apenas para desviar-se,
correr para a esquerda,
atravessar a praça
e meter por uma ruela negra.

Mas, parando um instante,
ouve os passos do outro na sua direcção.

E então foge através do bairro,
do tempo,
de pedra em pedra,
com o seu pavor de animal perseguido,
ouvindo o bater implacável
dos pés do outro.
Haveria palavras para ouvir,
a antiquíssima súplica do perseguidor:
porque foges?

E que poderia ele dizer?:
tenho medo?

As palavras nunca mais acabariam,
enredar-se-iam umas nas outras,
seria um jogo mortal.

Não mais haveria
a suspensão do irremediável,
esta espécie de silêncio na beira do crime,
no qual sabemos,
com dor,
que ainda estamos vivos.

Ele foge.

Quem sabe
se a noite terá fim?


Herberto Helder


Cortaram os trigos. Agora

a minha solidão vê-se melhor.



Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, julho 21, 2004

atiro pétalas ao vento na noite e partilho o seu enlevo




A casa onde às vezes regresso é tão distante

da que deixei pela manhã

no mundo

a água tomou o lugar de tudo

reúno baldes, estes vasos guardados

mas chove sem parar há muitos anos



Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai

Uma viagem se deu

Entre mãos e o furor

Uma viagem se deu: a noite abate-se fechada

Sobre o corpo



Tivesse ainda tempo e entregava-te

O coração


José Tolentino Mendonça


terça-feira, julho 20, 2004

A Salada




No meu prato que mistura de Natureza!
As minhas irmãs as plantas,
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza. . .

E cortam-nas e vêm à nossa mesa
E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
Que chegam com correias tendo mantas,
Pedem «salada», descuidosos...

Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
A sua frescura e os seus filhos primeiros,
As primeiras verdes palavras que ela tem,
As primeiras cousas vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu
E no ar por onde a pomba apareceu
O arco-íris se esbateu...



Alberto Caeiro

"usar as palavras certas..."

Usar as palavras certas e ter no entanto delas o pudor! Pronunciá-las então dentro dos lábios para que as possas recolher nas modulações do silêncio, como se as emitisse dentro de um aquário: o movimento da boca dos peixes. Assim o pensaria ainda hoje se não tivesse descoberto que afinal as palavras são peixes voadores. Elas atraiçoam a nossa contenção, forçam o degelo, conduzem-nos à clareira que buscávamos onde por fim abelhas zumbem e os teus lábios me salvam do sono.
 
 
Egito Gonçalves

sábado, junho 19, 2004

A chuva caiu



Olho
vejo a chuva cair
consegue ocultar tudo lá fora.
Fecho os olhos
imagino
a chuva assim
miudinha caindo de raiva,
imagino o sorriso no teu rosto
o sabor de um beijo molhado.
Abrigo-me de ti
ou
de mim nem sei
penso se renasci neste dia vago
como em tantos outros dias vagos
onde pensei que morri,
em noites inventadas de nada
e que o nada é teu rosto
surgindo numa paisagem de nevoeiro.

Não me importa que seja a chuva,
o nevoeiro,
o vento ou a madrugada,
não me importa
que seja a noite,
quero sim,
é que algo te traga



onda

  o teu sorriso no esplendor de uma suave explosão chega a mim o teu sorriso. aflui com emoção e calor, como sonhos mesclados nos en...